Antes de mais nada, saiba que esse projeto é fluido. Significar ele em um parágrafo é como resumir a história social. Ele começou em 2017, quando fotografei minha avó com demência e câncer de pele. Em 2021, fotografar pessoas não lúcidas não faz mais sentido. Quero que elas saibam o que estão fazendo e a diferença que a história delas trará. 
Depois de fotografar minha avó, um contato íntimo e emotivo, resolvi que queria fotografar mulheres com mais de 100 anos. E nem se eu quisesse fotografar homens, eles são em menor número na velhice. Eu não os encontrei. Primeira nota: a feminização do envelhecimento e o ciclo dos cuidados sempre gira em torno da mulher. De todas as mulheres que conheci, nenhuma era cuidada por homens. 
Em 2020, o primeiro ano da pandemia, meu projeto encarou outra questão: a pessoa velha enquanto corpo abjeto. A velhice nunca chega para quem vive ela, chega para o outro: o corpo abjeto é o corpo que não pode existir. Aqui, uma nota importante: a intolerância da pandemia refletida na pessoa velha. 
2021: A motivação mudou, assim como o nome. Agora eu falo dos “Corpos Censurados” e essa mudança partiu da experiência em fotografar mulheres velhas que viviam só ou amparadas por outras mulheres e tinha o objetivo de centralizar o corpo nu da mulher no espaço doméstico, evidenciando a relação da pessoa velha com seu ambiente físico. 
O progresso em fotografar a idosa nua esbarrava em negativas da mulher, que sentia estar inadequada e, principalmente, na sua família, que muitas vezes exercia uma tutela forçada sobre a idosa. Fotografar o corpo velho, nu, surgiu como um tabu quase que desconhecido e levantou fortes questionamentos a respeito das desaprovações: por que a nudez da mulher velha incomoda tanto, até mesmo após sua morte? Por que se evita falar sobre sexualidade a partir de certa idade? Por que mulheres nunca se sentem belas o suficiente para serem fotografadas? Por que os meios audiovisuais evitam criar enredos para e com as pessoas velhas sobre temas ligados a sexualidade? Por que estar em conformidade com um corpo enrugado é visto como depravado? E, principalmente: por que a resistência em olhar para o próprio corpo velho nas fotografias? As maiores evidências históricas estão no corpo: as rugas são crônicas de vida que exigem uma proximidade, de certa forma afetiva, para serem compreendidas. Toda história da humanidade pode ser investigada a partir da relação do indivíduo com o próprio corpo. Tal relação, sob o ponto de vista social, nem sempre igualitária, quando se trata de masculino e feminino. Me questiono: o que se conhece quando se conhece a nudez? De que nudez estarei falando? 
Até aqui, o corpo do sujeito velho poderia ser o epicentro da investigação: tanto o homem quanto a mulher enfrentam uma perda narcísica ao atingir a velhice e são resultados dos impactos vividos em sociedade. É o corpo que está no centro de todas as questões do mundo, é ele que recebe informações do social o tempo todo. Mas diante das questões femininas não está um corpo, mas o corpo de uma mulher. A mulher percorre a história sendo controlada por meio do que se tem de mais pessoal, seu corpo. Essa relação se estabelece ainda no ultrassom quando se descobre um bebê do sexo feminino. A partir daí o corpo que gesta e também o do bebê, que está por vir ao mundo, experimentam uma série de regras sociais: a menina é “feminilizada” e “essa 'feminilização' não termina aí; pelo contrário, essa interpelação fundacional é reiterada pelas autoridades e ao longo de vários intervalos de tempo que reforçam ou contestam esse efeito naturalizado. 
É no envelhecimento, principalmente, que a mulher se dá conta que o corpo é tudo o que se tem. É quando sofre por um corpo jovem que deixa para trás dia após dia, internalizando o princípio de que juventude também esteja associada a libido. Sofre imaginando a opinião alheia sobre seus possíveis relacionamentos e seus próprios desejos a envergonham, resultado das obrigações de decência que a sociedade impõe. 
Simone de Beauvoir prenunciava em 1970, que era “[...] preciso desejar conservar, na última idade, paixões fortes o bastante para evitar que façamos um retorno sobre nós mesmos [...]”. Estar de frente com a própria imagem, descoberta e evidente, pode ser a saída para uma nova concepção sobre si. Resolvi ser parte do meu projeto, ver meu corpo envelhecer; meu corpo nu, como o seu. Mas isso é assunto para outro capítulo. Sigo.
Maria Cicília, 63 anos, psicóloga clínica e professora aposentada. Optou pela não maternidade. Vive só, mas é casada e, atualmente, à distância. Fotos feitas para a tutoria de Monica Allende, em VII Academy - janeiro de 2021.
Ficha técnica
Título: Vésper
Data de início: 2017 - em andamento.
Técnica fotográfica: digital, cor, raw e pós-processamento em Adobe Lightroom.
Fotografias realizadas em Santa Catarina, Mato Grosso e Pernambuco - Brasil.

Contatos 
Manu Rigoni
Telefone: +55 81 98903-1915



You may also like

Back to Top